23 de maio de 2013

Ó Pai, partiste a televisão?



Eis que as diversas ligas europeias de futebol chegaram ao final. Num intervalo de poucos dias, um atrás do outro, os vencedores iam sendo anunciados. Mas as vitórias que deveriam ter terminado em festas populares de rua, tornaram-se em certos casos em batalhas campais entre adeptos furiosos dos próprios clubes vencedores e as forças de segurança, e/ou transeuntes anónimos e inocentes, e julgo até, para cúmulo da ironia, que em alguns casos com gente que nem se deve importar muito com futebol. Aconteceu assim em Paris na vitória do Paris Saint-Germain. O mesmo sucedeu em Madrid, finda a Taça do Rei, com a vitória do Atlético sobre o Real. Contudo, estas situações não são novas. Não aconteceram pela primeira vez. Mas que há uma relação, eu diria que sinistra, entre a vitória de um clube de futebol e as emoções que esta despoleta nos seus adeptos, e que logo servem para justificar a mais gratuita violência contra pessoas e bens, é incontornável. E depois são os painéis alargados de cientistas sociais e desportivos, em debates intermináveis, que analisam os acontecimentos e lhes dão uma explicação aparentemente circunspecta, mas fundamentada em teorias peregrinas que estes comportamentos violentos dos adeptos são proporcionais à deterioração moral e social do modelo em que estamos vivendo. A questão, porém, convida à sua recolocação objetiva no tempo: durante milénios a violência e a guerra (a face mais extrema da violência) funcionou como a face mais crua de uma legítima vontade inerente às sociedades humanas, a do domínio pela força. Isto, caros leitores, perdurou até há umas décadas atrás, fosse sob a forma dos campos de extermínio nazi, fosse sob a forma das cadeias de tortura dos ex-regimes comunistas do leste europeu. Só que a violência associada ao futebol, aparentemente espontânea, que parece originária em emoções de exaltação e não de frustração, acaba por revelar algo bem pior: a de que estas manifestações menos felizes e cada vez mais frequentes são a articulação lógica de um mal-estar social e espiritual mais abrangente. E ao qual é preciso as autoridades estarem cada vez mais atentas.
O futebol tornou-se numa máquina que foge ao controlo de qualquer política social de bom senso. Os clubes cresceram magistralmente, profissionalizaram-se, estão cotados em bolsa, quando perdem um título significa que o acionista perderá dinheiro, deixará de investir. Concomitante, alimentaram-se verdadeiras máquinas de apoio devoto e incondicional, as claques. Trocou-se o antigo e salubre hábito de ir à bola ao domingo à tarde, quando os adeptos ainda o eram quase por ingenuidade, por uma questão de vida ou de morte. Antes era-se de um clube quase por um ingénuo bairrismo, hoje é-se porque o adepto precisa descarregar as pulsões sociais acumuladas e nada melhor do que um estádio de futebol. E se ainda assim se sentir insatisfeito, resta-lhe a rua. A polícia. O centro comercial. O metropolitano. E algumas lojas de conveniência. Nada se lhe escapa.  
Confesso-vos, caros leitores, de que tenho um clube. Que o coração sofre um pouco por ele, sim é verdade. Mas longe de mim arremessar paus ou lançar pedras contra quem não tem nada a ver com a frustração ou a alegria que o meu clube me dá. Faz-me lembrar a história que um dia me contaram: Ó pai, partiste a televisão? Então, ó filho, não vês que o golo marcado foi uma roubalheira! Ó pai, é só um jogo de bola! Pois é, filho, também é só uma televisão.
 
In Açoriano Oriental, 23 de maio de 2013.

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