23 de janeiro de 2015

A Europa de Sartre morreu?

in AO, 22 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo, afinal, é quem? A pergunta é retórica. E, claro, não tem uma resposta concreta, porque depende do ponto de vista que se adote. E pontos de vista sobre o atentado terrorista de Paris são mais do que muitos. E todos eles, a uma certa altura, contradizem-se quanto a questões tão básicas como a defesa da própria liberdade de expressão e os seus limites. É inevitável que coloquemos sempre à frente a liberdade de expressão. Foi assim que aprendemos. Mas depois dizer orgulhosamente que deste modo vencemos a guerra contra os terroristas, que não nos amedrontamos com ameaças daquelas, de que estamos dispostos a combater com a própria vida a nossa liberdade, parece-me presunção em demasia, pois não é fácil dizer-se que se venceu a guerra contra o terrorismo.
Contudo, há um reverso da moeda, um fator de risco de que a Europa Ocidental não pode a qualquer custo esquecer: a guerra em torno daquilo que é a liberdade de expressão, os seus limites, e aquilo que é a responsabilidade de cada um, seja jornalista, cartoonista, comunicador, opinador, ou um simples cidadão.
Ou seja: a discussão em torno dos limites da liberdade de expressão é uma discussão eterna e aberta, e voltou à ribalta do modo e no tom que os próprios jihadistas assim o definiram e o desejaram. Em primeiro lugar, sabiam que não haveria um consenso (e não há) entre os livres-pensadores do Charlie Hebdo e a tradicional estrutura religiosa europeia, assim como os setores mais conservadores da sociedade; Depois, os terroristas também o sabem, que em tempo de depressão social e económica é perfeitamente possível lançar uma discussão caótica sem fim à vista, autodestrutiva, em torno de um dos pilares do velho continente: a liberdade de expressão. E, terceira questão, quem faz um ataque brutal daqueles não programou apenas a semana seguinte de consternação e revolta, mas as ondas de choque estariam, a priori, previstas.
Ora, tudo isso faz com que do lado de cá defendamos ainda mais acerrimamente a liberdade de expressão; E do lado de lá, que se alimente ainda mais o direito à revolta e à indignação. É bizarro, mas no terreno é assim que as coisas se passam.
A defesa da liberdade de expressão, em massa, nas ruas, é legítima. Eu também andaria por lá. Porém, essa defesa não se pode tornar em algo de irracional quando a própria causa se tornou ela mesmo irracional. Quem, todos os dias, se dispõe a troçar dos usos e costumes do vizinho do lado, absolutamente distintos dos nossos, sujeita-se a que ele não apenas não me aceite, como legitime a sua resposta, seja no grau soft, seja em versão radical. Foi essa a reação dos radicais islâmicos, a versão hard, aquela de que não gostamos. E daí devemos retirar algumas ilações.
A liberdade de expressão deve ser preservada sem qualquer reserva ideológica, cultural, ou filosófica. Contudo não vive de atitudes persecutórias a um credo religioso ou crença política, nem pode ser posta em perigo o seu pleno uso, mesmo que por uma obstinação absurda de que uma determinada ideia tem de passar a qualquer preço – no concreto, os cartoons do profeta islâmico.

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